lunes, 15 de marzo de 2010
A VISÃO HISPÂNICA DO HOMEM
Maeztu passou também pela crise europeizante de que foram vítimas muitos de sua geração. Mas superando as vacilações e incertezas de seus companheiros, acabou por chegar às fontes cristalinas da cultura hispânica.
Ao lado de Victor Pradera, com os seus artigos na Acción Española, ajudou a preparar o movimento nacional. Depois deram ambos a própria vida pela causa que sustentavam. Quando o foram retirar do cárcere, numa fria madrugada de outubro, teve ainda tempo de receber a absolvição sacramental, dada por um sacerdote seu companheiro de cela, e em seguida não mais se soube dele.
A legenda de sua morte transmitiu-nos suas últimas palavras. Antes de ser fuzilado, fitando os verdugos, teria dito: “Vós não sabeis por que me matais! Eu sei por que morro: para que vossos filhos sejam melhores que vós!”.
Dom Ramiro morria para que prevalecesse, em toda a plenitude, o sentido hispânico da vida, alcançado por ele ao termo de suas andanças intelectuais e daí por diante objeto de uma doutrinação constante e corajosa. Conhecia, e por experiência, a maldade dos homens, mas acreditava na possibilidade de fazê-los bons: “morro para que vossos filhos sejam melhores que vós!” Em suas palavras está o pressuposto da visão hispânica do homem, bem diversa das concepções do ser humano elaboradas em seguida ao naturalismo da Renascença.
Um dos valores fundamentais da civilização do Ocidente, que se anuncia nas páginas da Antígona ou nos ensinamentos e no exemplo de Sócrates, é a idéia da dignidade da pessoa humana. O Cristianismo fez o mundo compreender esta idéia na sua exata significação e em todo o seu alcance. As civilizações orientais baseavam-se num sistema em que a personalidade individual era absorvida pelo Todo: o totalitarismo do Estado egípcio, o panteísmo hindu, a aniquilação da alma no nirvana. A afirmação do homem como criatura de Deus a Deus destinada, da sua finalidade transcendente, da sua liberdade, da igualdade da natureza racional em todos os homens, coexistindo com as variações individuais e com as diferenciações sociais — eis uma das notas características do que costumamos chamar a cultura ocidental, nota esta procedente da ação civilizadora da Igreja, e por isso mesmo fruto de um dinamismo ecumênico tendente a abranger todos os povos da terra.
Ora, essa visão do homem sofre modernamente um desvio, mas subsiste de forma pronunciada entre os povos hispânicos. O desvio começa com o protestantismo e a Renascença, cuja “exaltação do indivíduo” foi posta em relevo por Burckhardt. A cultura essencialmente teocêntrica da Cristandade medieval segue-se, na Europa post-renascentista, uma cultura antropocêntrica. A tese calvinista da predestinação faz o homem separar o céu da terra, uma vez que, estando de antemão predestinado ao inferno ou ao paraíso, a sua conduta neste mundo nada tem que ver com a vida eterna a alcançar[8]. O mito do estado de natureza e do bon sauvage inspira a Rousseau a idéia de que o homem é naturalmente bom[9]. E em direção inversa à deste otimismo ingênuo, Hobbes afirma que o homem é um lobo para o homem, e Spengler vê no homem um animal de rapina, legitimando o poder absoluto do Estado e contribuindo para a justificação do totalitarismo.
Frente a um tal pessimismo, que acaba por anular a personalidade humana, e repelindo as exagerações dos individualismos modernos, a visão hispânica do homem mantém-se fiel à concepção católica reafirmada no Concílio de Trento.
O valor supremo do homem está em ser uma criatura de Deus, dotada de alma espiritual e imortal. Livre e debilitado pelo pecado original ele pode inclinar-se ao mal e ao bem, cuja prática lhe é assegurada pela graça divina. E, assim, todos podem salvar-se.
Escrevendo precisamente sobre o sentido do homem nos povos hispânicos, Ramiro de Maeztu fazia ver que tal foi a posição espanhola no século XVI, posição ecumênica de todos os povos de estirpe castelhana ou lusitana: “Ao tempo em que a proclamávamos em Trento, e quando pelejávamos por ela em toda a Europa, as naves espanholas davam pela primeira vez a volta ao mundo para poder anunciar a boa nova aos homens da Ásia, da África e da América”.
“Pode-se, pois, dizer que a missão histórica dos povos hispânicos consiste em ensinar a todos os povos da terra que se quiserem podem salvar-se, e que sua elevação não depende senão da sua fé e da sua vontade”.
Trata-se de um sentido transcedente da vida, que não nos leva, porém, à negação da individualidade concreta, à maneira do transcendentalismo oriental. Bem ao contrário. Há a idéia do homem na realidade existencial quotidiana, perfeitamente individualizado e vivendo nas comunidades em que se integra, às quais lhe proporcionam os elementos para plena expansão da personalidade. É o homem da família, da localidade urbana ou campestre, da região, de uma tradição nacional, e ao mesmo tempo, o fiel que pertence ao Corpo Místico.
Quer-se, por vezes, diferenciar o português do espanhol, dizendo que este é eminentemente individualista e aquele é, por temperamento e por hábitos, mais gregário. Na verdade, entretanto, o individualismo do espanhol não se opõe às manifestações comunitárias, tão sensíveis na sua vida de família, nas tradições foraleiras e na sua plena identificação com a universalidade católica.
Isto a que chamamos, nos espanhóis, o individualismo, não é mais do que o grande apreço ao valor da pessoa humana. Daí resultam os sentimentos de honra e de lealdade num grau nem sempre atingido por outros povos. Daí decorre também o respeito aos privilégios que marcam a maneira de ser de cada um e a posição de cada um na escala hierárquica do ordenamento social. Entre os privilégios devem ser incluídas as liberdades populares asseguradas pelos fueros, o que explica a coexistência da aristocracia e da democracia na tradição espanhola.
E tudo isso é a contradição do individualismo moderno, nas suas sucessivas modalidades.
O individualismo protestante, rebelando-se contra o magistério infalível, separa o fiel da comunidade eclesiástica, para fazer a vida religiosa depender do livre-exame, ou seja, da razão de cada um. O individualismo liberal, na ordem econômica, com a livre concorrência e a lei da oferta e da procura, instaura as relações abstratas entre o vendedor e comprador, produtor e consumidor, empregador e empregado. O individualismo político das democracias baseadas no sufrágio universal igualitário suprime o voto por classe ou profissão, fundamentando o poder político na vontade do povo-massa, constituído pelos cidadãos abstratos e desvinculados das pequenas comunidades, quais sejam a família, o município ou a associação profissional.
Eis a visão do homem gerada pelo individualismo da Renascença e da pseudo-reforma protestante. É uma visão anti-histórica, que separa o homem de suas tradições e acaba por preconizar, para todos os povos, os mesmos regimes políticos e as mesmas constituições, meras decorrências dos Direitos do Homem e do Cidadão, sem levar em conta as particularidades diferenciadoras de cada comunidade nacional. É também uma visão infra-histórica, pois aceita os postulados fatalistas da predeterminação teológica ou do determinismo científico, transpondo para a vida social o princípio darwiniano do struggle for life e acabando por considerar os homens como animais, sujeitos a uma evolução que não alcança o plano da história.
A visão hispânica, pelo contrário, é uma visão histórica do homem inserido numa tradição e pertencente a grupos naturais (família), ou conjuntos sociais formados pelo direito costumeiro (comunidade de vizinhos, associação dos profissionais do mesmo ofício, etc.). mas daí não se segue um historicismo positivista, semelhante ao da escola histórica de direito de Savigny ou ao positivismo de Taine e Maurras, aceitando os elementos da tradição como simples fatos históricos da nacionalidade, independentemente de uma valoração metafísica.
A visão hispânica é também uma visão supra-histórica, de sentido transcendente. O homem dessa concepção entranhadamente católica é o peregrino em demanda da Eternidade, o homo viator, a alma na busca ansiosa do Infinito.
Até mesmo pensadores como Unamuno, desgarrados da essência mais profunda das Espanhas, com o espírito mais ou menos influenciado pelo racionalismo vindo das terras frias da Europa ou a se debaterem nas angústias existencialistas, como foram as do autor de El sentimiento tragico de la vida, até mesmo estes, quando não vencidos de todo pelo vírus europeizante, refletem na sua obra o sentido transcendentalista da vida.
Daí o contraste estabelecido por Unamuno entre a ciência e a sabedoria, esta tendo por objetivo a morte, e aquela a vida. Ensinam os autores espirituais que, quando meditamos sobre a morte é para vivermos bem, e daí uma compreensão melhor da vida e uma intensidade vital como a de São Francisco de Assis, desprezando a todas as coisas do mundo e empolgando-se diante da natureza, compondo o hino ao sol e às criaturas, sentindo-se numa só família com o irmão sol, com a irmã água, com os irmãos peixes e também com a irmã morte.
A ciência pode tornar mais agradável a vida, pode contribuir para prolongá-la. Mas há valores que estão acima da própria vida. E mais vale morrer salvando esses valores do que viver indignamente. Assim também para a consciência de um cristão la pena de vivir sin consuelo vale el consuelo de morir sin pena, como se lê numa inscrição colocada à entrada das ermidas de Córdova, na Serra Morena.
Nuestras vidas son los rios que van dar a la mar. Não há na lírica espanhola — observa Maeztu — pensamento tão repetidamente expresso, e com tanta beleza. A sabedoria dos Salmos e do Eclesiástico reflete-se nesse pensamento das coplas de Jorge Manrique, e também nos versos de Espronceda:
Pasad, pasad en óptica ilusoria...
Nacaradas imágenes de gloria,
Coronas de oro y de laurel, pasad.
Isto não implica em cair na contemplação passiva dos hindus e no negativismo do nirvana. O homem hispânico é o homem que dá o devido valor à sua vontade, da qual depende a própria salvação, a ponto de por vezes exagerá-lo.
Diante de tais premissas metafísicas e teológicas, compreende-se que seja incompatível com o caráter histórico dos povos hispânicos o liberalismo do homem abstrato e do Estado naturalista secularizado, bem como as ideologias a que esse mesmo liberalismo deu origem, isto é, o socialismo, em suas várias modalidades, e a concepção do Estado totalitário. Repare-se que o socialismo espanhol se filia principalmente ao anarquismo, o qual implica numa exaltação do indivíduo em face da coletividade. Por sua vez, as tendências totalitaristas manifestam sobretudo o fenômeno do caudilhismo, isto é, significam a glorificação carismática do valor pessoal do chefe e não o culto a essa entidade abstrata a que chamamos Estado.
Com todos os cambiantes do caráter português, sem esquecer o cunho menos individualista e mais comunitário da formação lusitana, o mesmo amor ao concreto, a mesma afirmação da liberdade pessoal, a mesma inadaptação ao liberalismo de tipo anglo-saxônico ou às formulas revolucionárias e abstratas de 1789, nota-se na história de Portugal. Daí o fracasso das experiências republicanas, e as crises insolúveis suscitadas pela democracia política moderna em povos que, pela sua formação histórica e pela própria índole dos seus habitantes, foram sempre tão apegados às liberdades populares e souberam criar admiráveis formas de organização social autenticamente democráticas.
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